Caro leitor,
No artigo de hoje, comparamos a matriz elétrica brasileira com a do restante do mundo. Vamos constatar que o Brasil tem uma posição privilegiada, posto que gera 81% da sua eletricidade a partir de recursos renováveis e sustentáveis. Destaco aqui, a ascensão meteórica da energia elétrica eólica e solar (fotovoltaica).
Em seguida, discuto sucintamente, a origem da energia geotérmica e o mecanismo básico para o seu melhor aproveitamento – a perfuração de poços. No mundo, a energia geotérmica é utilizada, principalmente, no aquecimento das residências, na indústria, na agricultura e na produção de energia elétrica. No Brasil, devido às condições do nosso subsolo, ela é aproveitada, basicamente, para banhos termais e recreação.
Na última secção, eu analiso as usinas elétricas geotérmicas convencionais e focalizo a usina geotérmica EGS (Enhanced Geothermal System) – a mais complexa e avançada do ponto de vista tecnológico. Quem sabe, através das EGS, o Brasil possa vir a construir suas primeiras usinas geotérmicas.
Quando comecei a escrever sobre esse assunto, rapidamente muito material foi se acumulando e o artigo ficou extenso. Julguei melhor organizar o texto em secções, de maneira que o leitor, com um clique, seja direcionado para aquele item desejado.
Boa leitura!
Matriz Elétrica do Brasil e do Mundo
Energia Geotérmica no Brasil e no Mundo
Matriz Elétrica do Brasil e do Mundo
Energia renovável e sustentabilidade. Qualidades e conceitos que, no século XXI, se tornaram relevantes, fundamentais e indispensáveis. Hoje, quase toda empresa, seja ela industrial, agrícola, comercial ou bancária tem, no seu portfólio, referência a esse selo verde. Lamentavelmente, existem empresas solertes que se metamorfoseiam de “verde” para ganhar a simpatia e o apoio do consumidor ou do cliente.
As principais energias renováveis são: a hidráulica, eólica, solar, biomassa e geotérmica (Figura 1) [1]. São formas sustentáveis, com baixa emissão de gases de efeito estufa. As energias não renováveis mais utilizadas são: os combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão mineral) e energia nuclear.
A matriz energética de um país é composta por todas as formas de energia responsáveis pelo aquecimento, transportes e produção de eletricidade. Já a matriz elétrica de um país, se restringe àquelas formas de energia que geram eletricidade.
Vale a pena fazer uma análise comparativa da matriz elétrica do Brasil com a do resto do mundo [2], [3]. Na Figura 2, vemos que enquanto a média mundial utiliza cerca de 28% de energia renovável para produzir eletricidade, no Brasil, esse valor sobe para 81%! Nada mal.
No Brasil, a produção elétrica total atingiu (julho/2022) 196,6 gigawatts de potência instalada. Muito embora a maior contribuição ainda venha das hidrelétricas (53,5% do Brasil, 4% importada, totalizando 57,5%), essa participação vem diminuindo nos últimos anos.
A energia eólica já é a 2ª. maior fonte produtora de eletricidade no Brasil, respondendo por 10,8% do total ([4], [5]). No ranking mundial, o Brasil está na 6ª. posição. Com bons ventos, a região nordeste produz 80% da nossa energia eólica. As turbinas eólicas são aerogeradores que possuem hélices gigantescas, montadas sobre enormes torres com até 150m de altura (Figura 3).
A energia solar fotovoltaica é a 3ª. maior fonte de energia elétrica do Brasil, com 8,5% da produção nacional. Desse total, 69% correspondem a energia fotovoltaica distribuída (para residências, comércio, indústrias etc.) e 31% para a energia fotovoltaica centralizada (geradas pelas usinas fotovoltaicas). Recentemente, a energia elétrica fotovoltaica teve um crescimento explosivo pois, até 2016, praticamente, ela não existia no Brasil. No ranking mundial, o Brasil está em 13º. Lugar [5].
Ao contrário das usinas hidrelétricas que produzem energia continuamente, a energia fotovoltaica só opera durante o dia. O fornecimento noturno é feito ou por um banco de baterias ou via conexões com a rede hidrelétrica. Os dois estados com maior produção de energia fotovoltaica distribuída são Minas Gerais e São Paulo [4] e fotovoltaica centralizada são Minas Gerais e Bahia (Figura 4).
Paralelamente à produção de eletricidade, a energia fotovoltaica vem sendo utilizada na produção do “hidrogênio verde”, através da hidrólise da água que separa o hidrogênio do oxigênio. Esse hidrogênio, que é armazenado na forma líquida no tanque de combustível (do automóvel, caminhão ou ônibus) vai para a célula de combustível, reage com o oxigênio produzindo eletricidade. Daí por diante, os componentes eletromecânicos são iguais aos dos veículos elétricos com baterias de íons de Lítio. Para produzir “hidrogênio verde”, uma alternativa está sendo pesquisada [6]. Ela utiliza semicondutores, água e luz solar.
Antes de tratarmos das usinas geotérmicas, é interessante tecer algumas considerações sobre uma outra fonte renovável de eletricidade, mas com baixa eficiência. Consiste em utilizar as ondas das marés para movimentar as turbinas. São as chamadas usinas undi-elétricas. Essa fonte de energia renovável nem aparece na Figura 1, pois sua contribuição é ínfima, tanto no Brasil quanto no resto do mundo. O Brasil possui apenas uma única usina undi-elétrica construída no Ceará (Figura 5) [7].
A energia geotérmica é aquela proveniente do interior quente do nosso planeta. Ela pode ser aproveitada de maneira direta – para aquecimento e indireta – para geração de energia elétrica. Na forma direta, através da água ou vapor quentes, ela já era utilizada nos famosos banhos romanos.
Antes de discutirmos a utilização da energia geotérmica na sua forma indireta, isto é, para a produção de eletricidade, é muito importante analisarmos a origem desse calor planetário.
Origem da Energia Geotérmica
A superfície do nosso planeta recebe, continuamente, 24 horas de calor oriundo do núcleo quente da Terra e, cerca de 12 horas, de calor gerado pela radiação eletromagnética oriunda do Sol. A supremacia solar é avassaladora. Durante o dia, o Sol envia para a Terra 173.000 trilhões de joules por segundo de energia contra meros 47 trilhões de joules vindos do interior da Terra.
Praticamente, a radiação solar controla a nossa atmosfera, os oceanos e as formas de vida sobre a Terra. Entretanto, no solo e no fundo dos oceanos, essa radiação penetra, apenas, algumas dezenas de centímetros. Como a crosta terrestre tem de 30 a 70 km de espessura (para mais detalhe, veja [9]), ela é controlada, termicamente, pelo calor vindo do interior da Terra – a energia geotérmica.
Estima-se que metade da energia geotérmica atual venha do calor primordial, isto é, do calor gerado pelo esfriamento da Terra, desde a sua formação, há 4,5 bilhões de anos atrás. A outra metade, é o chamado calor radiogênico, isto é, o calor gerado pelo decaimento radioativo de elementos químicos presentes na crosta e no manto terrestre.
Em ordem decrescente de contribuição ao calor radiogênico, os principais elementos radioativos são: Tório 232, Urânio 238, Potássio 40 e Urânio 235. A quantidade desses elementos é estimada através de detectores de neutrinos (geoneutrinos) [10].
Perfurando Poços
Para se construir uma usina elétrica com base na energia geotérmica, cavam-se poços (às vezes, com mais de um quilômetro de profundidade) em busca de vapor (com temperatura acima de 235oC) ou água quente (entre 120 oC e 180 oC , que se encontra líquida devido à alta pressão no poço de onde ela é extraída).
O poço mais profundo escavado (até agora) pelo ser humano fica na Rússia, na Península de Kola, perto da fronteira com a Noruega. Sua perfuração foi iniciada em 1970 (pela, então, União Soviética) com objetivos puramente científicos, não comerciais [11]. O poço atingiu seu máximo em 1989, na profundidade (quase vertical) de 12.226 metros (Figura 6).
Nesse ponto, a escavação cessou, pois, a temperatura havia atingido 180oC e o material rochoso lá embaixo havia adquirido uma consistência viscosa, “plástica”, inibindo a perfuração. O local do poço foi escolhido por ter um subsolo granítico. Estudos sísmicos anteriores indicavam que, embaixo do granito, haveria basalto (o principal constituinte da crosta oceânica) mas, ele não foi encontrado. Por outro lado, constatou-se a presença de água quente mineral em todos os níveis da perfuração.
Entre os poços voltados para a exploração comercial de gás e petróleo, o recordista é o poço Z-44 Chayvo, perfurado na plataforma marítima perto da ilha de Sakhalin (Rússia). Em 2012, ele atingiu o comprimento de 12.375 metros (mais longo, mas, menos profundo que o de Kola).
No Brasil, o recorde pertence à Petrobras que, em 2021, atingiu a profundidade de 7.700 metros no poço de Monai (Pré-Sal), no Espírito Santo [12].
Energia Geotérmica no Brasil e no Mundo
Hoje em dia, de uma perspectiva mundial, a energia geotérmica na forma direta é utilizada predominantemente para o aquecimento de residências, banhos termais, agricultura e indústrias, nessa ordem (veja Figura 7) [8]. Algumas outras utilizações direta da energia geotérmica são: refrigeração (veja abaixo), derretimento de neve e aquecimento de estufas.
De maneira geral, quando o fluido (vapor ou água) se encontra em baixa temperatura (algo entre 35oC e 150oC), apenas a forma direta de aproveitamento da energia geotérmica é possível. É o que acontece na maior parte do território brasileiro.
Nosso subsolo não tem um fluxo de calor geotérmico razoável. Estamos no centro da placa tectônica Sul-Americana o que, se por um lado nos protege de grandes terremotos, por outro, faz com que nossa energia geotérmica seja utilizada quase que exclusivamente, para fins turísticos e recreativos (banhos termais).
O enorme sistema aquífero Guarani, fornece água em baixa temperatura que é utilizada apenas para recreação nos estados de Goiás (Caldas Novas), Minas Gerais (Araxá), Piratuba (Santa Catarina) e Olímpia, Águas de Lindóia e de São Pedro (São Paulo) [13].
A energia geotérmica superficial (rasa) pode ser utilizada tanto para aquecer quanto para refrigerar ambientes. Essa possibilidade vem sendo explorada desde a década de 1980 em vários países. Podendo ser usada em edifícios comerciais e residenciais, a ideia consiste em levar o calor do ambiente para o subsolo mais frio.
Para isso é necessário que, durante a construção do prédio, as estacas da fundação estejam acompanhadas por tubos que, quando cheios d´água e através de uma bomba de calor, refrigeram o ambiente.
Essa forma de ar-condicionado já é usada, por exemplo, nos prédios da Google em Mountain View, Califórnia. No Brasil, ela será testada pela USP [14], na construção do Centro de Inovação em Construção Sustentável (CICS) na cidade universitária.
Usinas Elétricas Geotérmicas
Para se construir uma usina geotérmica economicamente viável é necessário satisfazer algumas condições geológicas. Regiões com presença de vulcanismo, gêiseres, fontes termais ou localização próxima dos interstícios das placas tectônicas, são altamente favoráveis à implantação de usinas geotérmicas.
Hoje, o maior produtor de energia elétrica geotérmica é os Estados Unidos. Somente o campo “The Geyser” na Califórnia, formado por 22 usinas, gera mais de 1,5 gigawatts de potência. Em seguida vêm a Indonésia, Filipinas, Turquia e Nova Zelândia.
Mas o maior produtor de energia elétrica geotérmica per capita é a Islândia (Figura 8). Com 600 fontes termais e 200 vulcões, 25% de toda sua energia elétrica tem origem geotérmica!
As chamadas usinas geotérmicas convencionais (naturalmente convectivas) são de três tipos: vapor seco, que utiliza diretamente o vapor em alta temperatura (acima de 235oC); flash, em que há uma mistura de água e vapor (com temperatura entre 150 e 170oC) e ciclo binário, em que a água ( com temperatura entre 120 e 180oC) entra em contacto com um segundo fluido (com ponto de ebulição mais baixo) e o vaporiza [15].
Atualmente, as usinas geotérmicas são responsáveis por cerca de 0,4% de toda a eletricidade produzida no mundo. É pouco. Segundo estimativa do Conselho Mundial de Energia, as usinas geotérmicas convencionais poderiam alcançar (na melhor das hipóteses) 8,3% da produção mundial de eletricidade [16].
O Brasil não tem nenhuma usina geotérmica
Como discutimos na secção anterior, o Brasil tem um subsolo em que água e vapor são encontrados em temperaturas baixas ou moderadas. Isto inviabiliza a construção de usinas geotérmicas convencionais. Mas, quem sabe, poderemos vir a ter uma usina geotérmica não convencional do tipo EGS (Enhanced Geothermal System)?
Basicamente, em uma usina EGS um fluido frio é injetado em um poço (previamente perfurado), profundo o suficiente para atingir rochas muito quentes, secas e impermeáveis, e fazê-lo jorrar, na forma de vapor muito quente, por um outro poço de saída, próximo e paralelo.
Portanto, diferentemente das usinas tradicionais que buscam bolsões de fluidos aquecidos, nas usinas geotérmicas EGS os alvos são rochas quentes, impermeáveis e secas. São perfurados poços (com profundidades de alguns quilômetros) nos quais o fluido frio é injetado. Este fluido, ao entrar em contacto com rochas muito quentes, se aquece (alta pressão) e, através de um segundo poço, aflora à superfície (pressão atmosférica), onde o fluido se evapora passando a movimentar as turbinas.
As primeiras tentativas de se construir uma usina geotérmica EGS tiveram início na década de 1970 na Islândia, EUA e Alemanha. Foram dezenas de projetos piloto, mas a imensa maioria não teve sucesso [17]. Na Austrália, depois de 5 anos e 144 milhões de dólares gastos, o projeto piloto foi cancelado (em 2016). A água injetada, fluía por falhas geológicas previamente desconhecidas. Em 2006, na Suíça, engenheiros tiveram que fechar o poço perfurado pois este estava provocando pequenos terremotos. Na Coréia do Sul, em 2017, um projeto EGS causou um terremoto de 5,5 na escala Richter.
Mas, há esperança. Um projeto ambicioso (FORGE, Frontier Observatory for Research in Geothermal Energy) está em andamento em Utah, EUA [1]. Iniciado em 2018, com um orçamento de 218 milhões de dólares, o poço perfurado tem 22 cm de diâmetro e atingiu, este ano, a profundidade de 3.300 metros. Para penetrar o duro granito, eles lançaram mão de técnicas já utilizadas pela indústria de extração de petróleo e gás natural, como fraturar o granito com fluido de alta pressão e buscar ângulos quase horizontais para interceptar estresses naturais da rocha.
Cada avanço, foi monitorado por sensores sísmicos ligados a softwares especialmente desenvolvidos para detectar pequenos deslizamentos. As paredes do poço foram forradas com aço, o que permitia selar (através de juntas especiais) uma secção do tubo para, abaixo dela, detonar pequenos explosivos. Finalmente, nos últimos 60 metros de rocha (sem ter a parede protetora de aço), eles injetaram água a uma pressão de 250 atmosferas e um fluxo de 50 barris por minuto. Isso abriu, na base do poço, extensas fissuras. Monitorando todos os abalos sísmicos a distâncias de até 500 metros do poço, eles agora têm um mapa geológico e sísmico de toda a região próxima e ao longo do poço de entrada. Nos próximos meses, uma análise detalhada e rigorosa de todos esses dados, indicará onde e como deve ser perfurado o poço de saída do fluido.
Estima-se que usinas geotérmicas EGS possam gerar cinco vezes mais energia elétrica do que o consumo atual nos EUA [1]. E, ao contrário das usinas eólicas e fotovoltaicas, a produção não é intermitente.
Em abril de 2022, o Departamento de Energia dos EUA destinou mais 84 milhões de dólares para construção de mais 4 usinas geotérmicas EGS, em diferentes locais e tipos de rochas. Em junho de 2022, a Associação Helmholtz da Alemanha, liberou 35 milhões de euros para o estudo de usinas geotérmicas em rochas cristalinas.
Até onde eu sei, não existe no Brasil nenhum projeto piloto de construir uma usina geotérmica EGS. Naturalmente, sua implementação requer financiamento e investimento em tecnologia e recursos humanos. Mas, quem sabe não seja este o caminho para termos uma usina geotérmica no Brasil?
*Físico, Professor Sênior do IFSC – USP
e-mail: onody@ifsc.usp.br
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(Agradecimento: ao Sr. Rui Sintra da Assessoria de Comunicação)
Referências:
[2] Share of electricity production by source, World (ourworldindata.org)
[3] Energy Statistics Data Browser – Data Tools – IEA
[4] Aneel – Microsoft Power BI
[5] ABSOLAR – Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica
[7] Energia de ondas e marés deve avançar com aquecimento – Mar Sem Fim
[8] a17v38n01p08.pdf (revistaespacios.com)
[9] Sobre o campo magnético criado pela Terra, pelo homem e pelas estrelas – Portal IFSC (usp.br)
[10] Earth’s internal heat budget – Wikipedia
[11] Kola Superdeep Borehole – Wikipedia
[14] Underground cooling : Revista Pesquisa Fapesp
[15] Usina geotérmica | Enel Green Power
[16] WECJ1264_WEC_Resources_Geothermal.indd (worldenergy.org)
[17] Enhanced geothermal system – Wikipedia
Assessoria de Comunicação – IFSC/USP