Pesquisa básica, realizada por pesquisadores, prima pela qualidade e complexidade dos estudos e busca inibidores capazes de combater células tumorais
Falar sobre câncer tem-se tornado um assunto notório, não somente pelo número crescente de vítimas que a doença tem feito, sobretudo nos últimos anos, mas pelo aumento do número de pesquisadores interessados em encontrar alternativas para tratar o mal.
Dois exemplos são os pesquisadores do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), André Ambrósio e Sandra Gomes Dias, doutores pelo programa de pós-graduação do Instituto de Física de São Carlos (IFSC/USP), autores de um paper recém divulgado na publicação estadunidense Proceedings of The National Academy of Sciences (PNAS), que contou com a colaboração do docente do Instituto de Física de São Carlos (IFSC/USP), Richard Charles Garratt.
A repercussão do artigo justifica-se pela abordagem ampla e aprofundada de uma linha de pesquisa que, nos últimos dez anos, tem sido desenvolvida para encontrar inibidores capazes de combater células tumorais, baseados no “vício” dessas células por glicose e glutamina, sem prejudicar as células saudáveis. “Essa pesquisa começou quando eu e a Sandra estávamos fazendo pós-doutorado nos Estados Unidos e, quando voltamos ao Brasil, decidimos unir esforços para estudar proteínas de maneira mais multidisciplinar”, relembra André.
Contando com o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) para levar o projeto adiante, os pesquisadores utilizaram-se de diversas técnicas para estudar proteínas consideradas “chave” no desencadeamento de câncer, e, não ao acaso, depararam-se com a Glutaminase C (GAC), que a comunidade científica considera um “combustível” essencial para manter a proliferação exagerada das células tumorais. “Já se sabia da existência de três variantes da glutaminase e nosso trabalho mostrou que a GAC é a enzima mais ativa e pontencialmente chave no fenótipo tumoral”, conta o pesquisador.
A área de estudos do metabolismo tumoral se funda em descobertas do início do século XX e voltou à tona nos últimos anos. “Um desses estudos aponta um fenômeno, o ‘efeito Warburg’, que afirma que as células tumorais têm alta dependência de glicose para se proliferar. Outros estudos afirmam que a glutamina, junto da glicose, é um importante componente para propagação dessas células”, explica Sandra.
Com essas informações em mãos, os dois pesquisadores passaram a estudar mais profundamente a glutaminase e suas variantes, até chegarem à GAC. “As células tumorais consomem alta quantidade de glutamina, isso é fato. E grande parte dessa glutamina vem de fontes externas, através da alimentação, ou de proteínas que ficam armazenadas nos músculos do corpo, por exemplo. Normalmente, o nível de glutamina no sangue já é alto, sendo importante para alimentação de células saudáveis. Ao mesmo tempo, servem de combustível para as células tumorais e, consequentemente, para o seu crescimento”, conta a pesquisadora.
A novidade
A importância da glutaminase já era conhecida por alguns cientistas, mas os dois pesquisadores em questão fizeram algumas descobertas importantes: primeiro, conseguiram encontrar um composto – o 968 – que inibe a ação da glutaminase. “Participamos de uma publicação, elaborada na Cornell University, onde realizamos o nosso pós-doutoramento, que falava sobre esse inibidor”, conta Sandra.
Mas, mesmo assim, ainda era nebulosa a relação direta da glutaminase com tumores celulares. Foi quando André e Sandra separaram as três variantes da enzima e encontraram na GAC um “destaque” maior. “As outras duas variantes não se mostraram como ‘chave’ para o desencadeamento de tumores. A GAC seria a variante mais presente na mitocôndria, local da célula onde acontece o processamento da glutamina”, detalhou Sandra.
O paper, publicado no PNAS, finaliza apresentando a estrutura cristalográfica da GAC, algo que não se conhecia. E é justamente nesse ponto que mora o diferencial da publicação e, consequentemente, a qualidade dos estudos desenvolvidos pelos dois pesquisadores. “Essa informação é extremamente poderosa para a busca de inibidores da GAC, o que vários grupos de pesquisa já estão tentando encontrar”, conta Sandra.
Qualidade versus publicações
Richard faz questão de se pronunciar sobre a qualidade da pesquisa desenvolvida. “O IFSC está formando alunos que se preocupam com pesquisas de qualidade”, elogia o docente. “Hoje em dia, há uma grande ‘febre’ para publicação de muitos trabalhos e a essência da ciência está se perdendo um pouco, porque está se tornando uma máquina de produzir coisas, sem a devida preocupação com o impacto que aquilo irá causar. Não precisa existir aplicação em uma pesquisa, desde que seja feito um trabalho completo e que avance o conhecimento de alguma forma”.
O docente acredita que o trabalho ganhou notoriedade, pois trouxe várias abordagens diferentes para um mesmo problema. “A PNAS aceitou essa publicação, pois qualquer estudioso da área sabe que a glutaminase é uma proteína ‘chave’ para o desencadeamento das células tumorais”, explica.
Richard faz questão de frisar que a capacidade intelectual dos brasileiros para desenvolver pesquisas de qualidade equipara-se a de pesquisadores de qualquer parte de mundo e que é preciso ousadia para se conseguir os melhores resultados.
Embora a pesquisa em questão se trate de uma pesquisa básica, é importante ressaltar que tal descoberta abre muitas portas. “Nossa descoberta aumenta as chances de encontrarmos mais e melhores inibidores para o controle, e até mesmo cura para alguns tipos de câncer”, afirma Sandra.
Uma vez descoberta a estrutura da GAC, tem início uma nova etapa de trabalho no projeto; o foco volta-se, agora, para o estudo do BPTES, outro inibidor atualmente em estudo no laboratório de Sandra e Andre. “Já temos a estrutura do inibidor em complexo com a proteína e estamos realizando outros estudos para entender o mecanismo de inibição dele. Acreditamos que no meio do ano estaremos submetendo esse novo trabalho”, finaliza Sandra.
Assessoria de Comunicação