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11 de novembro de 2011

A Física e as doenças negligenciadas: o exemplo da esquistossomose

As doenças negligenciadas são um grupo de doenças tropicais, endêmicas – concentradas em um determinado espaço –, que se manifestam especialmente entre as populações mais pobres da África, Ásia e América Latina. Entre estas doenças, as mais conhecidas são a leishmaniose, a doença de Chagas, a hanseníase, a raiva, a esquistossomose, a dengue e a doença do sono.

Apesar de algumas das doenças negligenciadas serem consideradas prioritárias para a Organização Mundial da Saúde, todos os anos, essas doenças fazem aproximadamente um milhão de vítimas fatais. Isso porque as medidas preventivas e o tratamento para algumas dessas doenças até são conhecidos, mas não são disponíveis justamente nas áreas mais pobres do mundo.

esquistossomaDentre estas doenças, destaca-se a esquistossomose, por ser a forma de parasitose mais grave, matando milhares de pessoas por ano. Diferentemente dos parasitas causadores da maioria das doenças negligenciadas, como a doença de Chagas, a Raiva ou a Leishmaniose, que são causadas por vírus ou por organismos unicelulares, o Schistosoma mansoni é um parasita multicelular, visível a olho nu, que circula na corrente sanguínea. Por essa razão, o Schistosoma está constantemente exposto à ação do sistema imunológico de seu hospedeiro, mas ainda assim, resiste bravamente às investidas contra si. A esquistossomose acaba sendo uma infecção crônica, existindo relatos de pessoas que padeceram durante décadas desta enfermidade.

Atualmente, há um medicamento indicado para o tratamento da esquistossomose, considerado bastante eficaz e barato, custando apenas US$ 0,20 por pessoa por ano. Por que, então, a doença não é erradicada? O problema fundamental é que a droga apenas elimina a forma adulta do parasita, mas o meio ambiente ainda continua contaminado. As cercarias continuam vivas, contaminando ambientes aquáticos. Sem modificar este ambiente, o ser humano voltará a ser infectado.

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Além disso, o fato de existir apenas um medicamento contra uma enfermidade torna grande a possibilidade de que o organismo causador adquira imunidade contra o próprio medicamento. É um grande risco que, com o uso constante desta droga, acabe se selecionando formas resistentes contra ela. Desta forma, é um dos grandes desafios da saúde humana atualmente desenvolver, de maneira eficaz, um tratamento e, sobretudo, uma prevenção contra a doença.

esquis_itchNeste sentido, há uma série de projetos contemporâneos, nas mais diversas áreas do conhecimento, engajados na resolução deste problema, e também de várias outras doenças negligenciadas. No Instituto de Física de São Carlos, há pesquisas sendo desenvolvidas relativas à Doença de Chagas, à Leishmaniose e, também, à Esquistossomose. O docente Ricardo de Marco, do grupo de Biofísica Molecular “Sérgio Mascarenhas”, se dedica aos estudos do genoma e do transcriptoma do parasita, além de proteínas importantes na sua relação com o hospedeiro, tendo feito descobertas inéditas no último ano.

Duas facetas da pesquisa

Na primeira linha de pesquisa, De Marco desenvolve um estudo bioinformático do genoma e do scriptoma deste parasita. Com isso, um dos principais objetivos é entender a organização do genoma do parasita, o que significa dizer que um dos focos da pesquisa são elementos de transição, elementos autônomos que vão criando várias cópias de si dentro do genoma. “É quase como se fosse um parasita dentro do genoma”, compara o pesquisador.

Segundo De Marco, quando a ciência descobriu estes elementos no genoma, pesquisadores de fato acreditaram se tratar de um parasita dentro do genoma. Entretanto, ao comparar com outros organismos, percebeu-se que todos os eucariontes têm estes elementos e que eles têm um caráter parasitário mas ao mesmo tempo existe a hipótese de que eles gerem uma dinâmica dentro do genoma.

No caso específico do Schistosoma, analisando a evolução de seu genoma, De Marco viu que a atividade destes elementos é muito grande em termos de transcrição. Daí decorre a hipótese de que seu funcionamento oferece certa flexibilidade evolucionária ao parasita, até porque sobrevive em um ambiente com alta pressão evolutiva, exposto ao sistema imune do ser humano. “Para o Schistosoma, é extremamente necessário ter um genoma que se modifique com o passar do tempo”, reflete o pesquisador. E completa: “Isto é negativo, por um lado, já que a probabilidade de ter indivíduos com defeitos nos genomas morrendo é maior, mas do outro lado tem-se a facilidade para se adaptar a desafios do ambiente em que vive, o que significa uma vantagem em termos de população do parasita”.

Do ponto de vista da ciência aplicada, esta descoberta pode vir a prejudicar as expectativas de erradicação do parasita e consequentemente da doença, já que a população dos parasitas se torna mais heterogênea, com indivíduos diferenciados em seu genoma. “Mesmo havendo um tratamento mais eficaz, há alguma probabilidade de que uma parcela da população sobreviva aos efeitos do medicamento, devido às características diferenciadas, e posteriormente se reproduza novamente”, explica De Marco.

Uma segunda etapa desta pesquisa relacionada ao Schistosoma mansoni é a análise informática de transcritos de genoma. Em uma colaboração com São Paulo, o trabalho é o sequenciamento do RNA – o ácido ribonucleico, uma molécula em cadeia simples com estrutura semelhante ao DNA que existe na célula como produto direto dos genes –, utilizando sequenciadores de última geração que oferecem uma quantidade enorme de dados. A nível molecular, para entender o organismo do parasita, a primeira coisa a ser feita é caracterizar os genes. Nisso, já houve grandes avanços, com relevantes projetos contando com importante participação brasileira, e hoje os transcritos do parasita são descritos muito mais facilmente. No entanto, ainda existe uma lacuna, lacuna esta que o esforço de sequenciamento do grupo de De Marco tenta suprir.

Uma outra faceta do trabalho relacionado ao Schistosoma mansoni é o trabalho com proteínas que estão envolvidas na relação entre parasita e hospedeiro. Ricardo de Marco, com a colaboração de grupos do IQ-USP e da University of York (Inglaterra), descreveu de maneira inédita um grupo de genes que possuem exons (regiões codificantes do RNA mensageiro, que compõem o gene com os íntros, as regiões não codificantes do RNA m) muito pequenos, denominados micro-exons (ver artigo aqui). Este sistema genético complexo nunca havia sido descrito em nenhum organismo e permite a produção de proteínas secretadas pelo parasita que possuem alto grau de variação. O Schistosoma é o único organismo que teve esta classe de genes descrita. O interessante deste sistema é que o parasita pode retirar qualquer um dos exons ali presentes e isso forma uma nova proteína sem afetar o resto da proteína, que permanece idêntica. “Isso é um mecanismo de variação proteica”, explica De Marco. “Outros parasitas como a tripanosoma também possuem mecanismos de variação antigênica, mas utilizando mecanismos completamente diferentes – mecanismos clonais, com várias cópias do mesmo gene – mas nada igual ao schistosoma”, completa. A hipótese a partir destas constatações é de que esse mecanismo de variação de proteínas esteja relacionado de alguma forma com mecanismos de variação antigênica e estas, por sua vez, sejam uma forma de fugir do sistema imunológico do hospedeiro. É uma hipótese bastante viável pois uma das formas do sistema imunológico combater os ataques ao corpo humano é mobilizar anticorpos, e esses anticorpos são produzidos através do reconhecimento de algumas partes de proteínas. Se a proteína está sempre variando, o sistema imunológico não sabe quais anticorpos produzir, e o parasita vai dominando o corpo cada vez mais.

Esta etapa do trabalho, agora, tem como objeto privilegiado estas proteínas. “Queremos saber como é a estrutura destas proteínas, tentamos reproduzi-las, investigar se interagem com proteínas humanas e assim desvendar qual é exatamente seu papel na relação parasita/hospedeiro”, explica o pesquisador.

E a Física?

A Física está presente nestas pesquisas com uma série de princípios que regem o funcionamento dos equipamentos mais importantes utilizados no sequenciamento dos genes em questão. Por exemplo, em alguns estudos específicos de proteínas, é necessário emitir algum tipo de radiação para interagir com a proteína, ou verificar o quanto ela fica carregada ou como ela faz um percurso ao passar por um campo magnético, para medir certas propriedades. “A Física é uma ferramenta muito importante, até para mim, que não sou Físico de formação, para perceber dados específicos em sistemas biológicos”, explica De Marco.

Pesquisa básica

Muito antes de um conhecimento tornar-se um bem prático, um benefício aplicado diretamente na sociedade, ele precisa ser inteiramente investigado e desvendado dentro de centros de pesquisa – esta é a chamada pesquisa básica. Nesta etapa da pesquisa, a preocupação fundamental é examinar detalhadamente o objeto de pesquisa, exame que, apesar de não ter um fim prático específico como objetivo imediato, é fortemente inspirado pelas necessidades observadas na sociedade. A pesquisa com o parasita causador da esquistossomose, por exemplo, não procura desenvolver de fato uma droga, ou um tratamento, para a doença, mas seu potencial é incalculável. “Ninguém cria um medicamento contra um organismo sem entender este organismo”, afirma o pesquisador. Entender a atuação de um parasita pode, inclusive, ampliar o entendimento do ser humano sobre seu próprio sistema imunológico, já que o Schistosoma domina e controla facilmente as investidas do corpo do hospedeiro contra si. “Se algum dia a medicina conseguir controlar o sistema imunológico do ser humano da mesma maneira que este organismo controla, poderíamos resolver problemas como a rejeição de órgãos transplantados ou de qualquer tipo de implantes, só para citar alguns exemplos”, comenta De Marco.

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Esta pesquisa é um importante primeiro passo para a evolução do entendimento desse mal que acomete a humanidade, e pode ter uma continuidade muito significativa para a ciência mundial. Afinal, “a ciência se constrói com acúmulo de conhecimento”, afirma o pesquisador. É quando as peças do quebra-cabeça se encaixam que é possível criar uma utilidade prática para a sociedade comum, do ponto de vista da ciência aplicada. E os resultados significativos da ciência básica, por um lado, criam grande expectativa na sociedade, e por outro, incentivam a investigação mais profunda de muitos outros tópicos que permanecem obscuros para a humanidade, dentro do mundo acadêmico.

Assessoria de Comunicação

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Instituto de Física de São Carlos - IFSC Universidade de São Paulo - USP
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