Figura 1 – Muito calor e alta umidade relativa do ar são ingredientes que favorecem a hipertermia. Por outro lado, quanto mais seco o ar tanto melhor para a nossa transpiração
Artigo: Prof. Roberto N. Onody *
Afinal de contas, qual é a temperatura máxima suportada pelo ser humano?
Uma temperatura interna (retal) acima de 43oC por mais de 6 horas é mortal para 99,9% dos seres humanos.
O caso mais extremo e excepcional conhecido foi registrado no ano de 1980 em Atlanta, Georgia (EUA). Willie Jones deu entrada no hospital com temperatura interna de 46,5oC, ficou 24 dias internado, mas, sobreviveu.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, morrem cerca de 489.000 pessoas por ano devido ao calor extremo. Claro, é muito difícil ter os números exatos (ou mesmo aproximados) uma vez que nos atestados de óbito constam apenas as causas imediatas da morte como ataque cardíaco e AVC.
Para se determinar os efeitos do calor ou do frio sobre toda uma população, devemos analisar a taxa média de mortalidade registrada para uma mesma temperatura média diária. Em artigo publicado na revista The Lancet em 2015, pesquisadores analisaram mais de 74 milhões de mortes em 384 cidades de dezenas de países. Para cada cidade, eles calcularam a média do número de mortos para uma mesma temperatura média (média ao longo de 24 horas). Alguns resultados estão mostrados na Figura 2.
Figura 2 – Risco Relativo como função da temperatura média (o C). Em RR = 1, tem-se a Temperatura que Minimiza a Mortalidade (TMM). Ela está indicada pela barra vertical verde. Seus valores são: 22,6 para Sydney; 21,5 para São Paulo; 19,5 para Londres e 23,1 para Nova Iorque. Embaixo de cada curva, temos os histogramas do número médio de mortes por dia para cada temperatura. Há mais mortes quando a temperatura está abaixo de TMM. O frio mata mais do que o calor. Fonte: The Lancet, volume 386, página 369 (2015)
Em todos os gráficos vemos que existe uma temperatura ótima na qual a mortalidade apresenta um mínimo. Se, para cada temperatura, dividirmos o número de mortos pela mortalidade mínima teremos o Risco Relativo (RR), que mede o crescimento do número de mortes seja pelo aumento ou pela diminuição da temperatura média.
O estudo publicado na revista The Lancet se refere aos efeitos do calor sobre toda uma população. Mas, qual o efeito do excesso de calor sobre um indivíduo? Uma pessoa com hipertermia produz mais calor do que o seu corpo consegue dissipar. Se essa situação se mantiver por algumas horas, haverá falência múltipla dos órgãos, podendo até mesmo levar à desnaturação das proteínas do corpo.
A temperatura do corpo humano gira em torno de 36,5o C. Mantemos essa temperatura gerando calor através do nosso metabolismo.
Em repouso, o metabolismo do corpo humano produz 100 joules de calor por segundo. Somos uma máquina de 100 watts de potência.
Deve-se acrescentar ainda o calor proveniente da radiação solar. Juntos, todo esse calor é então eliminado por condução térmica e evaporação (suor).
O nosso regulador térmico fica no hipotálamo, uma pequena estrutura que fica no encéfalo e envia sinais para todo o corpo controlando tanto a produção de calor quanto a sua dissipação.
O nosso principal órgão de dissipação de calor é a pele. Ela é mantida a uma temperatura um pouco mais baixa do que aquela do interior do nosso corpo para que ela possa receber calor e, através das glândulas sudoríparas, transformá-lo em suor. Ao evaporar, o suor retira calor resfriando nosso corpo.
Figura 3 – Quantidade máxima de vapor d´água (em gramas por metro cúbico) presente no ar em função da sua temperatura (em graus Celsius) na pressão de 1 atmosfera. Quando essa umidade máxima é atingida, o suor não mais evapora deixando de refrigerar nosso corpo. Quanto mais seco o ar tanto melhor para a nossa transpiração
O quanto nós suamos depende da umidade do ar. A atmosfera aceita vapor d´água até uma certo valor máximo de saturação. Esse valor máximo depende da temperatura do ar (veja Figura 3). Atingido esse valor, o excesso do vapor d´água se condensa – é o ponto de orvalho (ou geada, se a temperatura estiver abaixo de 0oC) .
Define-se a umidade relativa do ar (em %) como sendo a quantidade de vapor d´água presente no ar dividida pela quantidade máxima (saturação) de vapor d´água àquela temperatura.
A tolerância humana ao calor depende da temperatura e umidade do ar e da radiação solar. Nos estudos que investigam os limites humanos ao excesso de calor, utilizam-se os termômetros de bulbo úmido. Enquanto o termômetro comum de mercúrio (de bulbo seco) mede a temperatura do ar, o termômetro de mercúrio de bulbo úmido (Figura 4) mede a temperatura levando em conta a umidade do ar.
No termômetro de bulbo úmido, o bulbo fica em contacto permanente com uma malha porosa (em geral, algodão) embebida em água destilada. Ao evaporar, a água retira calor do bulbo do termômetro, abaixando a sua temperatura. É o mesmo processo de resfriamento que acontece nos filtros de barro. A água contida no interior desses filtros mantém o material poroso (barro) sempre úmido e, ao evaporar, resfria a água do filtro.
Figura 4 – (a) Um psicrômetro é composto por um termômetro de bulbo seco (à esquerda) e um termômetro de bulbo úmido (à direita). Medindo-se as duas temperaturas pode-se calcular a umidade relativa do ar e o seu ponto de orvalho. (b) Um termômetro de globo de bulbo seco e úmido além de ter as funcionalidades do psicrômetro, mede também o calor de radiação. É muito utilizado para medir as temperaturas e o calor em ambientes industriais e garantir o conforto térmico dos trabalhadores. Ele determina o IBUTG (índice de bulbo úmido termômetro de globo), criado pela norma regulamentadora (NR15) do Ministério do Trabalho e que trata da insalubridade e segurança no trabalho
A temperatura medida pelo termômetro de bulbo úmido é sempre menor ou igual àquela medida pelo termômetro de bulbo seco. Quanto mais seco o ar tanto maior será a diferença das temperaturas medidas pelos termômetros de bulbo seco e úmido. Elas são exatamente iguais quando a umidade relativa do ar é de 100%.
Em 2010, um estudo seminal investigou os limites humanos ao excesso de calor. No experimento, um grupo de voluntários em posição de repouso e sem roupa, foi submetido a aumentos de temperatura até que tivesse início a hipertermia. Os pesquisadores encontraram uma temperatura crítica de bulbo úmido acima da qual a morte é inevitável
Ttemperatura crítica de bulbo úmido = Tc = 35 o C
Para entendermos melhor as consequências dessa temperatura crítica precisamos lembrar que ela é uma isoterma de temperatura de bulbo úmido. Há que se considerar, então, sua relação com a temperatura do ar (bulbo seco) e com a umidade relativa do ar. Isso é mostrado na Figura 5.
Quanto maior for a umidade relativa do ar tanto pior, mais difícil fica a sobrevivência. Por exemplo, se a umidade relativa está próxima de 100% basta uma temperatura do ar da ordem de 35oC para dar início a hipertermia. Se a umidade relativa do ar é baixa, a situação melhora. No mês de setembro, na cidade de São Carlos, a umidade relativa do ar girou em torno de 20%, o que significa que poderíamos suportar temperaturas de até 60oC!
Em 2023, na revista Nature, foi feita uma investigação mais aprofundada na qual vários aspectos fisiológicos que afetam a hipertermia foram levados em conta.
Figura 5 – Isoterma crítica: umidade e temperatura do ar para que a leitura no termômetro de bulbo úmido seja igual à temperatura crítica de 35oC. Quanto menor a umidade relativa do ar, maior a probabilidade de sobrevivência. Por exemplo, se a umidade relativa do ar for de 35%, nós podemos sobreviver até uma temperatura máxima do ar de 50oC. Gráfico feito com o auxílio do Wet Bulb Calculator
Nesse estudo, pessoas voluntárias foram separadas em 2 grupos: jovens (18 a 40 anos) e idosos (acima de 65 anos). Cada um desses grupos foi dividido em 2 subgrupos: aqueles que permaneceriam na sombra e aqueles que ficariam expostos ao sol. Os resultados estão mostrados na Figura 6.
Analisando esses novos resultados concluímos que o cenário piorou, pois, as temperaturas de hipertermia diminuíram!
No trabalho de 2010, quando a umidade relativa do ar estava próxima de 20% a temperatura de início da hipertermia era de 60oC. Agora elas caíram para: 51oC (jovens na sombra), 47oC (jovens expostos ao Sol), 46oC (idosos na sombra) e 41oC (idosos expostos ao Sol).
*Físico, Professor Sênior do IFSC – USP
e-mail: onody@ifsc.usp.br
Figura 6 – Gráficos da umidade relativa do ar (%) versus a temperatura do ar (o C): (a) jovens na sombra; (b) idosos na sombra; (c) jovens expostos ao sol; (d) idosos expostos ao sol. Em todos eles, a linha preta grossa marca o limite de sobrevivência. A linha preta fina é a mesma em todos eles e corresponde à isoterma crítica de 35o C mostrada em detalhes na Figura 5. Fonte: J. Vanos et al, Nat Commun 14, 7653 (2023)
(Imagem de destaque na home – Onlymyhealth)
(Meus agradecimentos ao Sr. Rui Sintra da Assessoria de Comunicação do IFSC/USP)
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Assessoria de Comunicação – IFSC/USP