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23 de maio de 2022

Hibernação, torpor e sono – Distinguir os animais que hibernam daqueles que passam por um estado de torpor diário

Figura-1: Diagrama esquemático para distinguir torpor diário e hibernação. (a) A variação da temperatura do corpo de um animal entorpecido, abaixa durante a noite e aumenta durante o dia. (b) A variação da temperatura de um animal que hiberna, dura meses, e é entremeado por breves intervalos de despertar fisiológico. Durante esses pequenos intervalos, os parâmetros fisiológicos retomam seus valores pré-hibernação (Crédito: ref. [1])

Por: Prof. Roberto N. Onody *

A saúde das células de um organismo vivo depende de parâmetros vitais como temperatura, osmolaridade e oxigenação. Para sua preservação, os animais têm que dar respostas fisiológicas às mudanças ambientais, num processo chamado homeostase.

Alguns animais dão uma resposta extraordinária às alterações ambientais – a hibernação. A hibernação é um conjunto de estratégias fisiológicas escolhidas para enfrentar um ambiente muito hostil e adverso, como grandes mudanças de temperatura, falta de comida ou de água. Em geral, o estado de hibernação se caracteriza por uma diminuição da temperatura do corpo, decréscimo da pulsação e da pressão arterial, diminuição do metabolismo e de toda a atividade do animal. A palavra hibernação vem do latim hibernare, que significa ´passar o inverno´.

De maneira surpreendente, o número de animais diferentes que se beneficiam da hibernação é, realmente, muito grande. Inclui tanto animais heterotérmicos (isto é, que não mantêm a temperatura do seu corpo constante, aproximando-a da temperatura ambiente) como répteis, anfíbios e peixes, e os animais homeotérmicos (isto é, que mantêm a temperatura do seu corpo, aproximadamente, constante) como os mamíferos e aves.

É preciso distinguir os animais que, de fato, hibernam daqueles que passam por um estado de torpor diário. Na Figura 1, temos um gráfico esquemático mostrando a diferença [1].  A variação da temperatura de um animal que hiberna é pontuada por breves intervalos de despertar fisiológico (entrementes, o animal não está acordado, consciente). Durante esses curtos intervalos, os parâmetros fisiológicos retomam seus valores pré-hibernação. Esses intervalos de despertar não existem no estado de torpor. Sabe-se que, durante esses intervalos de despertar, a máquina biológica entra em ação: ocorre divisão celular para produzir proteínas e reparar células, estímulo do sistema imunológico e reversão das contrações dos dendritos dos neurônios. Essas contrações sempre ocorrem durante o torpor.

Figura-2: O noitibó-de-nuttal (Phalaenoptilus nuttallii), única ave conhecida que hiberna (por até 100 dias) (Crédito: VeVET : Ahhh o frio… )

Para não sofrer os efeitos de mudanças climáticas, as aves migram em vez de hibernar. Só se conhece uma ave que hiberna – é a noitibó-de-nuttal, uma ave norte-americana (Figura 2).

Aves como o beija-flor não dormem e nem hibernam, mas passam por um torpor diário. Durante o dia, sua temperatura corporal é de cerca de 40oC, batendo o coração num ritmo frenético (1.200 vezes por minuto). À noite, sua temperatura cai para 18oC e coração desacelera para cerca de 50 batidas por minuto.

Nós, seres humanos, durante o sono, temos um decaimento de 1 a 2 graus Celsius da nossa temperatura corporal, uma diminuição de cerca de 10% do nosso metabolismo e da pressão arterial. Quando a temperatura aumenta, nós transpiramos e perdemos calor na forma de suor; quando a temperatura diminui, nós trememos para aumentar a produção de calor.

Todos os animais, para sobreviverem, devem manter a temperatura corporal dentro de um certo intervalo. Abaixo de 0oC, cristais de gelo podem se formar no interior das células, rompendo suas membranas. Acima de 40oC, as proteínas se desnaturam, perdendo sua função.

Para controlar sua temperatura, o animal tem que produzir calor (animal endotérmico ou, popularmente, de ´sangue quente´) ou receber (ou mesmo perder) calor do sol (animal ectotérmico, de ´sangue frio´). Um animal endotérmico pode ser homeotérmico ou heterotérmico. Por outro lado, todo animal ectotérmico é heterotérmico.

A hibernação de animais de sangue frio (peixes, répteis e anfíbios) é chamada de brumação.  Ao contrário dos animais de sangue quente (que, antes de hibernarem, se empanturram de alimentos), eles não precisam se alimentar antes de brumar. Quando está muito frio, colocam-se em um lugar que tenha sol, abaixam a temperatura corporal aproximando-a da temperatura ambiente, diminuem o ritmo metabólico, a respiração e as batidas cardíacas. Se está muito quente, as alterações fisiológicas se repetem, só que desta vez, o animal procura um lugar fresco e à sombra. Este último caso também é chamado de estivação. Entre exemplos de animais que brumam estão algumas espécies de serpentes, tartarugas, jacarés, sapos, peixes, abelhas e até o pequeno caracol.

Figura-3: O fofinho lêmure anão (Fat-tailed Dwarf Lemur). Antes de hibernar, seu peso aumenta em 40%. Essa gordura extra se acumula na sua cauda, daí seu nome ´Fat-tailed´ (Crédito: ref. [2])

Entre os animais de sangue quente que hibernam, o destaque fica para os mamíferos, principalmente aqueles de pequeno porte. São esquilos, morcegos, porcos-espinhos, gambás e marmotas. Estas últimas, famosas por, supostamente, conseguirem prever se o próximo inverno será muito rigoroso ou não, hibernam por 5 meses. Neste período perdem um quarto do seu peso, diminuem seus batimentos cardíacos de 100 para apenas 10 batimentos por minuto e sua temperatura corporal de 37 para apenas 2 graus Celsius!

Quando falamos em hibernação, a imagem imediata que nos vem à cabeça é a de um urso. Essa é uma percepção comum – o urso como modelo de hibernação. É, porém, equivocada. Hoje, a maioria dos biólogos prefere caracterizar como torpor! Isto porque a temperatura corporal dos ursos cai apenas 5oC durante a ´hibernação´ e as batidas cardíacas diminuem de 50 para 20 por minuto (muito pouco quando comparamos, por exemplo, com a marmota). Os ursos são animais enormes (que pesam entre 400 e 700 kg) e muito fortes – a mordida de um urso pardo pode esmagar uma bola de boliche. Antes do inverno eles precisam engordar muito (cerca de 1,5 kg por dia!) para queimar calorias durante a dormência. Mas, é uma obesidade saudável.  Saem do inverno bem ´fit´, com um peso 30 % menor.

O único primata conhecido que hiberna é um lêmure anão encontrado na ilha de Madagascar (Figura 3). Sua temperatura corporal, que é de 37oC diminui para 16 oC. Seu batimento cardíaco despenca de 180 para apenas 8 batidas por minuto [2]. Eles podem hibernar por até 7 meses!

Vamos agora, analisar os mecanismos biológicos envolvidos na hibernação. Entre eles, o controle térmico corporal tem um papel fundamental e o sistema nervoso autônomo é o encarregado desse controle.

A sensitividade térmica do nosso corpo se deve à presença de termorreceptores [3]. Termorreceptores são terminais nervosos livres encontrados na pele, fígado, músculos esqueléticos e no hipotálamo. No ser humano, o número de termorreceptores para o frio é 3,5 vezes maior do que para o quente.

No hipotálamo (Figura 4), neurônios termicamente sensíveis disparam os mecanismos de resposta ao calor e ao frio. Essa resposta é dada por diversos órgãos. Diretamente, pelo fígado e músculos esqueléticos e, indiretamente, pelo coração e a tiróide.

Na parte anterior do hipotálamo fica uma região chamada de pré–óptica. Ela é o verdadeiro centro de coordenação térmica, pois recebe sinais de termorreceptores periféricos (pele e medula espinhal) e os compara com aqueles vindos de termorreceptores centrais (hipotálamo). Ela os integra e escolhe a melhor resposta regulatória para dadas condições térmicas internas e externas (ambientais).

Figura-4: O hipotálamo é um órgão multifuncional. Ele controla a temperatura corporal, a fome, a sede, a fadiga e o ritmo circadiano. (Crédito: Medical News Today)

É também nessa região pré–óptica do hipotálamo que se dispara o sinal de alarme contra invasores no nosso corpo. O metabolismo de bactérias e vírus e a ação defensiva dos leucócitos, produzem pirogênios (moléculas de polissacarídeos ou peptídeos).  A presença dessas substâncias pirogênicas, diminui a atividade de neurônios sensíveis ao calor e aumenta a atividade dos neurônios sensíveis ao frio, causando a febre. O alarme defensivo foi acionado.

Experimentos realizados em mamíferos demonstraram que o aquecimento (resfriamento) da região pré–óptica reduz (aumenta) a taxa metabólica. Em outras palavras, a variação de temperatura nessa região altera a atividade dos neurônios. Voltaremos a esse assunto mais adiante.

Guardadas as devidas proporções (e precauções), o sono se assemelha muito à hibernação. Basicamente, o sono pode ser dividido em quatro fases: REM – movimento rápido dos olhos (Rapid Eye Moviment) e NREM – não REM, com 3 fases denominadas N1, N2 e N3, detectadas pelo eletroencefalograma. Quando nos deitamos para dormir, o sono se inicia com as 3 fases N1, N2 e N3 (nessa ordem). Cerca de 90 minutos depois vem a primeira fase REM, que dura de 10 a 60 minutos. Em seguida, elas vão se alternando com diferentes durações.

Durante a fase REM, as ondas cerebrais, a respiração e a pulsação aumentam de tal forma que se parecem com o da vigília. É a fase mais cheia de sonhos (agitados). Nessa fase, para evitar danos a nós mesmos e aos outros, nossos músculos estão paralisados!

Durante a fase NREM, há uma diminuição da temperatura corporal e do ritmo metabólico. Os vasos sanguíneos da nossa pele se dilatam, favorecendo a dissipação de calor. Exceto pelas amplitudes envolvidas (nos valores da queda da temperatura e do ritmo metabólico), a fase NREM é muito semelhante ao torpor.

Vejamos agora as diferenças. Ao contrário do que acontece na vigília, importantes experimentos demostraram que, durante a fase REM, alterar a temperatura da região pré-biótica não modifica a atividade dos neurônios. Ao contrário da fase NREM, durante o torpor não se observou dilatação de vasos cutâneos.

O torpor natural é caracterizado por uma diminuição espontânea da atividade metabólica e, consequentemente, da temperatura corporal. A temperatura do corpo pode se aproximar da temperatura ambiente, desde que esta fique acima de 0oC. Isso mostra, que a regulação térmica está deprimida, mas, ainda está presente.

Uma vez que o estado de torpor existe em todas as ordens de mamíferos (incluindo os primatas), acredita-se que a característica de supressão da taxa de metabolismo já estivesse presente em algum ancestral evolutivo. Portanto, em algumas espécies, os genes responsáveis pelo torpor foram silenciados.  Será possível reativá-los?

Existe um caso humano, reportado na literatura [4], que se aproxima do torpor. Um senhor de 51 anos tinha ataques de suor violentíssimos, várias vezes por dia. Esses ataques eram unilaterais, pois atingiam somente o lado esquerdo do seu corpo. Aconteciam, estando o paciente em pé ou deitado. Começaram após uma infecção identificada como do tipo influenza. Os ataques de suor duravam cerca de uma hora e meia, após o que ele sentia muita fraqueza, lentidão mental, tremores e muito frio. Sua temperatura baixava para apenas 31oC por, aproximadamente, 80 minutos. Todos os exames foram feitos, diagnósticos possíveis e medicamentos testados, sem resultado. Após 1 ano os sintomas simplesmente desapareceram.

A hipotermia terapêutica em seres humanos é muito utilizada em casos de injúrias cerebrais e coronárias. No processo de hipotermia, a cada 1oC de queda na temperatura de nosso corpo, há uma redução de 6% no consumo de oxigênio nos tecidos e de 10% no nosso cérebro. Porém, abaixo de 32oC esse ritmo diminui. Quando a temperatura chega a 15oC, nosso cérebro está consumindo apenas 17% do oxigênio daquele utilizado em nível normal. Mas, esses níveis de hipotermia só podem ser atingidos com enorme suporte de equipamentos clínicos especializados e coordenação humana.

Uma maneira alternativa (e, talvez, mais eficaz) de conseguir induzir torpor em mamíferos, seja reduzindo o seu metabolismo. O metabolismo envolve a ação de múltiplas enzimas e inclui o catabolismo – em que uma molécula complexa é quebrada em moléculas mais simples liberando energia e o anabolismo – que é o processo oposto, utiliza energia e moléculas mais simples para produzir moléculas mais complexas.

Buscando-se provocar torpor em mamíferos de maneira artificial (o chamado torpor sintético), várias substâncias têm sido testadas. Sulfeto de hidrogênio, N6-cyclohexyladenosine, 3-iodothyronamine (um hormônio da tiróide), etc. Na maioria dos casos, essas substâncias tiveram sucesso apenas em mamíferos de pequeno porte como ratos e esquilos.

O torpor sintético em seres humanos tem particular interesse em longas viagens espaciais. Um astronauta metabolicamente quiescente, ensejaria uma diminuição de consumo de oxigênio, comida, água, e quem sabe, até uma redução dos efeitos nocivos nos ossos e nos músculos da microgravidade.

*Físico, Professor Sênior do IFSC – USP

e-mail: onody@ifsc.usp.br

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(Agradecimento: ao Sr. Rui Sintra da Assessoria de Comunicação)

Referências:

[1] Cellular, Molecular, and Physiological Adaptations of Hibernation: The Solution to Environmental Challenges | Annual Review of Cell and Developmental Biology (doi.org) 

[2] Fat-tailed Dwarf Lemur – Duke Lemur Center

[3] The Central Control of Energy Expenditure: Exploiting Torpor for Medical Applications | Annual Review of Physiology (annualreviews.org)

[4] Paroxysmal episodic central thermoregulatory failure

https://doi.org/10.1212/WNL.58.8.1300

Assessoria de Comunicação – IFSC/USP

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