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9 de março de 2021

Do Pêndulo ao Relógio Nuclear

Ilustração artística do Relógio Nuclear (Crédito: P. G. Thirolf et al., Ann. Phys. 531, 1800381 (2019)

Por: Prof. Roberto N. Onody *

Medir o tempo sempre foi uma necessidade humana. Até o Renascimento, as medidas de tempo se baseavam nas fases lunares ou na rotação da Terra para definir o dia e nas diferentes posições do Sol no céu, em cada estação, para definir o ano. Depois disso, vieram os relógios de pêndulos e os relógios mecânicos. Mas, medir intervalos de tempo com maior precisão era crucial.

O primeiro relógio de cristal quartzo foi construído por Marrison  e Horton nos laboratórios da Bell Telephone, em 1927. O quartzo é um material piezoelétrico, isto é, ele se deforma mecanicamente pela passagem de corrente elétrica e vice-versa. A frequência de vibração ressonante do cristal de quartzo varia, tipicamente, de 30 a 100 KHz, acima, portanto, do limite superior da audição humana que é de cerca de 20 KHz. Hoje em dia, os mais modernos relógios de quartzo, atrasam ou adiantam aproximadamente 1 segundo em 150 anos. Os relógios de quartzo foram utilizados para medir o tempo padrão da década de 1930 até 1960, quando foram, então, substituídos pelos relógios atômicos.

Ao contrário do cristal de quartzo, cujas propriedades dependem da sua clivagem e características químicas, os átomos de qualquer elemento da Tabela Periódica são os mesmos em qualquer parte, aqui na Terra ou no espaço. Os elétrons absorvem radiação eletromagnética, com frequência muito bem definida, para saltar (ou decair) de um nível de energia a outro. A interação do núcleo atômico com a nuvem de elétrons que o rodeia, leva ao surgimento de uma estrutura hiperfina, na qual um nível de energia, antes degenerado (que significa, ter mais de um estado atômico com a mesma energia), se abre em dois ou mais novos níveis de energia. É, na transição do elétron entre esses níveis, que se baseiam os relógios atômicos.

O primeiro relógio atômico1,2 foi construído em 1949 no NIST (National Institute of Standards and Technology) e a substância utilizada era a amônia (NH3). Era um relógio bastante impreciso. No ano de 1955, o NPL (National Physical Laboratory, Reino Unido) construiu o primeiro relógio atômico de césio 133.

(Figura 1) – Esquema de funcionamento de um relógio atômico, tipo fonte, de césio 133 (Crédito: NIST (National Institute of Standards and Technology))

O relógio atômico de Césio 133 é o padrão que hoje define, o valor de um segundo. Na definição do Sistema Internacional de Unidades, um segundo é a duração de 9.192.631.770 períodos da radiação eletromagnética proveniente da transição eletrônica entre os dois níveis hiperfinos de energia, do estado fundamental do átomo de césio 133, na temperatura de zero absoluto (na prática, o mais próximo que se puder aproximar de 0 Kelvin). Essa radiação corresponde a um comprimento de micro-onda de 3,2 cm e uma energia de 3,79 10-5 eV.

O Césio 133 é o único isótopo estável, não radioativo (seu número atômico é 55). O seu estado fundamental (isto é, o estado com energia mais baixa) se abre, pela interação hiperfina, em dois níveis de energia, rotulados F=3 (energia mais baixa) e F=4 (energia mais alta). Como a probabilidade de decaimento do estado F=4 para F=3 é muito baixa, os átomos excitados para F=4 podem lá permanecer por um longo tempo.

Um pequeno esboço do funcionamento de relógio atômico de césio tipo fonte 3 é o seguinte (Figura 1): átomos de césio entram numa câmara a vácuo e têm seu movimento freado por lasers que fazem a temperatura do gás se aproximar do zero absoluto e dão ao gás um formato esférico; um laser vertical impulsiona a nuvem de átomos de césio para cima (daí o nome, fonte), fazendo-a penetrar numa cavidade de micro-ondas (que opera numa certa frequência); os lasers são desligados; a gravidade puxa a nuvem de césio para baixo fazendo-a passar, novamente, pela cavidade; nesse trajeto, parte dos átomos têm seu estado atômico alterado; ao saírem da cavidade, os átomos são iluminados por um outro laser; somente aqueles átomos que foram alterados no interior da cavidade emitem fótons (fluorescência) que são, então,  medidos por um detetor; o procedimento se reinicia, só que agora com a cavidade operando em nova frequência; o processo todo termina quando se obtém um máximo de fluorescência. A frequência ressonante em que isso acontece é a que define o segundo.

Um relógio atômico de césio tipo fonte pode chegar a uma precisão 3. 10-16 s, ou seja, atrasar 1 segundo em 100 milhões de anos. Há outros tipos de relógios atômicos de césio, mas são menos precisos. Por exemplo, a bordo dos 24 satélites que compõem o GPS (Global Positioning System), esses relógios têm precisão de 2.10-12 s, isto é, eles atrasam 1 segundo em 63.000 anos. Recentemente, em 2019, a NASA lançou ao espaço um satélite munido de um relógio atômico (Deep Space Atomic Clock) que utiliza íons de mercúrio e é 50 vezes mais preciso do que os do GPS.

O Instituto de Física de São Carlos (IFSC) e a Escola de Engenharia de São Carlos (EESC), da Universidade de São Paulo, já há muitos anos, constroem e mantêm relógios atômicos genuinamente brasileiros 4. O Laboratório de Tempo e Frequência, dessas instituições, faz parte do conjunto de laboratórios coordenados pelo Escritório Internacional de Pesos e Medidas (com sede na França) e que define o tempo atômico internacional (Figura 2).

Até aqui, vimos relógios atômicos que operam nas frequências de micro-ondas. Os físicos J. L. Hall e T. W. Hänsch receberam o Prêmio Nobel de Física de 2005 pelo desenvolvimento teórico do chamado relógio atômico ótico. Ótico aqui significa que a frequência de ressonância do relógio está no visível, isto é, de 400 a 790 THz (THz = 1 terahertz = 1012 Hz). Uma frequência de 500 THz é, aproximadamente, 50 mil vezes maior do que aquela operada pelo relógio atômico de micro-ondas (césio).

(Figura 2) – Um dos relógios atômicos do Laboratório de Tempo e Frequência da USP-São Carlos (Crédito: IFSC/EESC-USP)

Para implementar o relógio atômico ótico, novas e importantes tecnologias tiveram que ser desenvolvidas. por exemplo, pentes de frequência de femtosegundo (que corresponde a 10-15 s) e redes óticas.

Os pentes de frequência3,5 são fontes de laser cujo espectro consiste em uma sequência, discreta e igualmente espaçada, de linhas de frequências. As frequências do visível são muito altas para que um dispositivo eletrônico consiga contar o número de ciclos de oscilação. Daí a necessidade dos pentes de frequência da ordem de femtosegundos, que os transforma em sinais de micro-ondas.

As redes óticas são construídas utilizando-se feixes de laser que se interceptam e interferem, formando uma onda estacionária com picos e vales aprisionando os átomos3,6 (como os ovos numa cartela). É chamada de rede ótica, porque os átomos se distribuem como numa rede periódica cristalina. São átomos ou íons ultrafrios, o que diminui, substancialmente, a largura de linha (causada pelo efeito Doppler da agitação térmica) da transição.

Por volta de 2013, a precisão dos relógios atômicos óticos superou a do césio 7. Na Figura 3 temos: no eixo da ordenada, a incerteza fracionária, que mede a probabilidade de desvio da frequência do relógio em relação à frequência de ressonância e, na abcissa, o tempo (em anos).

Utilizando alguns milhares de átomos do isótopo Estrôncio 87 (número atômico 38), na forma de um gás degenerado de Fermi (um gás quântico de partículas fermiônicas), presos em redes óticas 3D e que ficaram coerentes por 15 segundos, G.E. Marti et al.8 conseguiram um relógio atômico ótico com incerteza fracionária de 2,5 10-19. Isso significa que ele atrasa 1 segundo em 127 bilhões de anos, quase dez vezes a idade estimada do universo. Com tanta precisão, em breve, o Sistema Internacional de Unidades poderá redefinir 1 segundo a partir de relógios atômicos óticos.

Observando a evolução dos relógios, temos as seguintes frequências de operação: 1 Hz para os pêndulos, 105 Hz para os relógios de cristal de quartzo, 1010 Hz para os relógios atômicos de césio (micro-ondas), 1015 Hz para os relógios atômicos óticos (visível). Um relógio é tanto melhor e mais preciso, quanto mais alta for a sua frequência de operação e menor a sua largura de linha (mais baixa a temperatura).

(Figura 3) – Evolução temporal dos relógios atômicos (Crédito: L. Sharma et al.7)

Para aumentar ainda mais a frequência (energia) dos relógios, precisamos recorrer às transições nucleares. Uma instrumentação que permita gerar e medir transições nucleares com muita precisão, é absolutamente fundamental para se construir um relógio nuclear (Figura 4).

Um núcleo atômico, formado por prótons e nêutrons, pode ser levado do seu estado fundamental para um estado excitado, que é chamado de isômero. O problema é que, na imensa maioria dos casos, a diferença de energia entre o estado fundamental e o primeiro estado excitado é da ordem de 103 eV a 106 eV. Em outras palavras, o decaimento gera uma radiação eletromagnética com frequências entre 1017Hz e 1020Hz (raios-x e raios-gama). E não dispomos, hoje, de espectroscopia laser operando nessas energias.

Mas, foi encontrada uma exceção. Em 1976, L.A. Kroger e C. W. Reich, estudando a estrutura nuclear do isótopo tório 229 (número atômico 90), previram a existência de um estado excitado, pela ausência de emissão de um raio-gama. Em 2003, E. Peik e C. Tamm mostraram que a transição ocorria na região do ultravioleta, sendo acessível, portanto, aos lasers atuais.

O tório 229 é um metal fracamente radioativo. Ele tem uma meia-vida de 7.920 anos e decai, via partículas alfa (formada por 2 prótons e 2 nêutrons), no elemento rádio. O núcleo excitado isomérico do tório 229 é metaestável. Entretanto, para se excitar esse estado através de um laser de banda estreita, há que se conhecer, com muita precisão, o valor da frequência de transição. E, durante muitos anos, a determinação dessa frequência permaneceu elusiva9.  

Em 2020, T. Sikorsky et al.10, utilizaram o decaimento alfa do urânio 233. O urânio decai em vários estados do tório, incluindo o primeiro estado excitado metaestável. A energia de transição foi medida através de um equipamento dedicado, o micro calorímetro magnético criogênico. O valor obtido foi 8,10 (+ – 0,17) eV (o que equivale a uma frequência de 1,96 1015 Hz). Os autores observaram que a barra de erro é de natureza apenas estatística, não sistemática, podendo ser melhorada com mais experimentos.

Tal precisão do relógio nuclear permitiria investigar, por exemplo, se há ou não, variação temporal da constante alfa de estrutura fina (que mede a intensidade da interação eletromagnética). Essa variação temporal poderia ser causada pela presença da matéria escura e obrigaria a uma revisão do Modelo Padrão das partículas elementares.

*Físico, Professor Sênior do IFSC – USP

(Agradecimento: ao Sr. Rui Sintra da Assessoria de Comunicação)

Referências:

1 https://www.nasa.gov/feature/jpl/what-is-an-atomic-clock

2 https://en.wikipedia.org/wiki/Atomic_clock

3 http://www.physics.udel.edu/~msafrono/626/Lecture%2016.pdf

4 https://www2.ifsc.usp.br/portal-ifsc/relogio-atomico-na-usp-de-sao-carlos/

5 https://www.rp-photonics.com/optical_clocks.html

6 https://www.nist.gov/topics/physics/what-are-optical-lattices

7 L. Sharma et al.  MAPAN (2020).

https://doi.org/10.1007/s12647-020-00397-y

8 G.E. Marti et al. PHYSICAL REVIEW LETTERS 120, 103201 (2018)

https://doi.org/ 10.1103/PhysRevLett.120.103201

9 L. von der Wesen, https://physics.aps.org/articles/v13/152

10 T. Sikorsky et al. PHYSICAL REVIEW LETTERS 125, 142503 (2020)

https://doi.org/ 10.1103/PhysRevLett.125.142503

Assessoria de Comunicação – IFSC/USP

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