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20 de dezembro de 2021

Um mistério – qual é o tempo de vida do nêutron?

Figura 1: James Chadwick (1891-1974), físico britânico que descobriu o nêutron em 1932. Recebeu o prêmio Nobel de física em 1935 (Crédito: Wikipedia)

Por: Prof. Roberto N. Onody *

“Rutherford, isso é uma transmutação!”, gritou Frederick Soddy para Ernest Rutherford. Rutherford respondeu que era melhor não chamar o fenômeno de transmutação espontânea, pois eles poderiam ser tachados de serem alquimistas. O ano era 1901. Eles haviam descoberto o decaimento ou a transformação do tório em rádio (ambos são elementos químicos radioativos).

No final do século XIX e início do século XX, físicos tentavam compreender a natureza dos materiais radioativos. As radiações emitidas pelos núcleos radioativos foram chamadas de alfa, beta e gama. Hoje sabemos que: a radiação alfa corresponde à emissão, pelo núcleo atômico, de dois prótons e dois nêutrons; a radiação beta, à transformação de um nêutron em um próton (o qual permanece no núcleo atômico) com a liberação de um elétron e um antineutrino; a radiação gama, à emissão de uma onda eletromagnética de alta frequência, os raios-gama.

Foi bombardeando o berílio com partículas alfa que, em 1932, J. Chadwick (Figura 1) descobriu a existência de uma partícula eletricamente neutra e com massa um pouco maior do que a do próton – o nêutron. No seu núcleo, o berílio tem quatro prótons e cinco nêutrons. Ao ser bombardeado por partículas alfa, o berílio se transforma no carbono e libera um nêutron. É uma transmutação artificial.

9 Be  +  4 He(α)              12 C  +  1 n

Os nêutrons têm carga elétrica (total) nula. Eles podem ser produzidos de muitas maneiras: em reatores nucleares; na atmosfera, pela incidência de raios gama e, nos laboratórios, em aceleradores que fazem íons de deutério (um próton e um nêutron) colidirem com íons de trítio (um próton e dois nêutrons).

Os núcleos atômicos são compostos por nucleons (prótons e nêutrons). Os prótons têm carga positiva e se repelem eletricamente. Para manter coesos os núcleos atômicos (com mais de um próton), são necessários os nêutrons. Os nucleons interagem entre si através da força nuclear (atrativa), que age para manter a estabilidade do núcleo.

Os nêutrons no interior do núcleo, através do decaimento beta, podem se transformar em prótons (emitindo, adicionalmente, um elétron e um antineutrino) e prótons podem se transformar em nêutrons (emitindo um pósitron e um neutrino ou ainda, capturando um elétron e emitindo um neutrino).

Portanto, os nêutrons e prótons enquanto eles estão ligados entre si no núcleo, têm uma probabilidade de se transformarem um no outro. Essa probabilidade depende do balanço energético do núcleo (que deve ser calculado via mecânica quântica).

Já para nêutron e prótons livres, os resultados são bem diferentes. Os nêutrons livres são sempre instáveis, isto é, decaem com o tempo. Por outro lado, os prótons livres são estáveis. Isso porque, como a massa do próton é menor do que a do nêutron, não há como ele decair e conservar a energia ao mesmo tempo.

Através do decaimento beta, um nêutron livre se transforma em um próton, um elétron e um antineutrino

n0            p+  +  e  +  ν

Esse decaimento ocorre pelo fato de que os nucleons interagirem entre si através da força fraca. Ela é uma das 4 forças fundamentais da natureza. As outras 3 são as forças forte, eletromagnética e gravitacional. Para entendermos melhor o decaimento beta, precisamos discutir, brevemente, o Modelo Padrão das partículas elementares.

Figura 2: Em verde o quark positivo up, em vermelho o quark negativo down. Todos os quarks têm spin ½. Logo, um número ímpar de quarks forma férmions (como o próton e o nêutron) e um número par de quarks forma bósons (como os mésons π com cargas: 0, +e, -e) (Crédito: R. N. Onody)

O Modelo Padrão foi proposto na década de 1960 e deu um arcabouço teórico quântico para a unificação das três forças: fraca, eletromagnética e forte. A quarta força da natureza, a gravitacional, não está incluída. A interação gravitacional é atualmente mais bem descrita pela Teoria da Relatividade Geral, proposta por Albert Einstein em 1915. É um formalismo teórico com uma criatividade disruptiva, o apogeu da genialidade de Einstein. Embora fartamente corroborada pelos resultados experimentais, a Teoria da Relatividade Geral, porém, é clássica. Ninguém conseguiu (até hoje) quantizá-la.

O Modelo Padrão é uma teoria quântica de campos baseada em doze partículas elementares fermiônicas (os férmions obedecem à estatística de Fermi-Dirac e têm spin semi-inteiro): seis quarks, todos com cargas elétricas fracionárias (1/3 e 2/3) do próton e do elétron e seis léptons, dos quais três têm cargas elétricas iguais à do elétron e três não têm nenhuma carga. No Modelo Padrão existem também partículas bosônicas (os bósons obedecem à estatística de Bose-Einstein e têm spin inteiro) que são os mediadores e os responsáveis pelas forças que atuam entre os férmions.

Em ordem crescente de suas massas, os quarks são chamados: up, down, charm, strange, bottom e top. O próton e o nêutron são formados por três quarks: dois up e um down (próton) e dois down e um up (nêutron). (Figura 2).

Na temperatura média do universo atual, os quarks estão confinados (presos) no interior dos nucleons. Teoricamente, o desconfinamento deve ocorrer na temperatura de Hagedorn, cerca de 1,7 1012 Kelvin. Experimentos de colisão entre íons pesados realizados no LHC (Large Hadron Collider), parecem indicar o desconfinamento. Acredita-se que, nos primeiros 10 microssegundos do universo após o Big Bang, os quarks eram livres. Para a teoria quântica de campos, a maior temperatura possível é a temperatura de Planck, que vale 1,4 1032 Kelvin!

Agora que entendemos melhor o que são dois componentes do decaimento beta, o próton e o nêutron, vamos analisar os outros dois – o elétron e o antineutrino. No Modelo Padrão, além dos 6 quarks, existem também seis léptons. Três deles têm o mesmo valor da carga negativa do elétron. São eles (em ordem crescente de suas massas): elétron, múon e tau. Os outros três têm carga nula: o neutrino do elétron, o neutrino do múon e o neutrino do tau. Todos os 6 léptons e 6 quarks têm suas respectivas antipartículas e têm spin ½, ou seja, são férmions.

Figura 3: O principal detetor de nêutrons ultrafrios em Los Alamos, EUA (Crédito: Los Alamos National Laboratory)

Na teoria quântica de campos, todos os férmions interagem entre si via bósons (mediadores da interação). Para as forças fracas (responsáveis pelo decaimento beta), os mediadores são os bósons carregados W + e W  e o bóson neutro Z 0.  Para a força eletromagnética, o mediador é o fóton. No caso da força nuclear (entre nucleons) os mediadores são os mésons e, para a força forte entre os quarks, os mediadores são os glúons.

À luz do que aprendemos do Modelo Padrão, o decaimento beta agora pode ser visto de maneira mais profunda e em duas etapas.

Primeiro, um (dos dois) quark down do nêutron decai em um quark up (transformando assim, o nêutron no próton) e emite um bóson W . Este bóson vive somente cerca de 10 – 25 segundos!

d                 u  +  W   

Em seguida, o bóson W  decai em um elétron e um antineutrino do elétron

W                e   +    ν

Agora é hora de explicarmos o dilema: qual é o tempo de vida do nêutron?

Para se determinar, experimentalmente, o tempo médio de vida do nêutron (que chamaremos de τ) são utilizados dois métodos distintos denominados “beam” e “bottle”. O surpreendente aqui, é que os valores obtidos para τ são diferentes!

Essa discrepância foi inicialmente, atribuída à falta de precisão dos experimentos (pois as barras de erros se sobrepunham). Mas, a partir de 2005, a precisão experimental aumentou tanto, que a explicação dada anteriormente já não era mais aceitável. À comunidade cientifica sobrou o quebra-cabeças: o que acontece com o nêutron ou com experimento? Qual a explicação? Ninguém sabe.

O mais preciso experimento tipo “beam” 1, foi realizado no NIST (National Institute of Standards and Technology), EUA. Um feixe colimado de nêutrons colide com uma camada fina de fluoreto de lítio (LiF). Essa colisão ocorre numa região que é uma armadilha para o confinamento de prótons. A colisão libera nêutrons livres, partículas alfa e trítio. Detetores contam o número de trítios e de partículas alfa, o que, por sua vez, permite calcular o número inicial de nêutrons livres. Depois de um certo intervalo de tempo, mede-se o número de prótons livres (que não decaem) e que, por hipótese, é igual, ao número de nêutrons decaídos nesse tempo. Como o decaimento é exponencial no tempo, o tempo de vida do nêutron pode ser calculado τ N(Δt) = – N(0) Δt onde N(t) é o número de nêutrons no instante t e Δt o intervalo de tempo.

O valor encontrado para o tempo médio de vida do nêutron foi τ1    =   887,7    (± 2,0) segundos , ou seja, cerca de 14,8 minutos.

O outro método, o “bottle” (também conhecido como UCN, Ultracold Neutrons) aprisiona (por longos períodos) nêutrons ultrafrios através de fortes campos magnéticos não homogêneos e o campo gravitacional terrestre. Como no caso do método “beam”, os nêutrons presos nessa armadilha decaem com o tempo. A grande diferença é que aqui são contados os nêutrons sobreviventes e não o número de prótons gerados (leia discussão mais adiante).

Recentemente 2, no laboratório do Los Alamos Neutron Science Center, essa técnica foi utilizada com nêutrons ultrafrios, isto é, com energia menor do que 180 neV (1 neV = um nano eletronvolt, que corresponde a uma temperatura de cerca de 0,002 Kelvin). A contagem dos nêutrons sobreviventes (Figura 3) foi feita em tempos variando de 20 segundos a 1.800 segundos.

Repetindo o experimento em vários ensaios, os pesquisadores obtiveram um outro valor para o tempo médio de vida do nêutron τ2    =   877,75    (± 0,50) segundos , uma diferença de 10 segundos!

Discussão

Qual experimento está errado? Ou os dois estão certos?

Se um dos experimentos está incorreto, então o erro tem que ser sistemático e deve ser sutil, muito sutil, pois tem ludibriado os físicos há mais de 15 anos.

Se os dois estiverem corretos, as consequências serão bem mais radicais, apontando a existência de uma teoria de partículas elementares além do Modelo Padrão. Isso porque, como τ1 (do experimento “beam”, que mede prótons decaídos) é maior do que τ2 (do experimento “bottle”, que mede nêutrons sobreviventes), tudo se passa como se o nêutron livre pudesse decair em outra partícula (até aqui, indetectável) além do próton. Ou seja, τ1 é maior porque mede o tempo de decaimento do nêutron no próton e em outra (ou, talvez, outras) partícula desconhecida. Se essa explicação estiver correta, abrir-se-ão as portas para se entender a matéria escura.

*Físico, Professor Sênior do IFSC – USP

e-mail: onody@ifsc.usp.br

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(Agradecimento: ao Sr. Rui Sintra da Assessoria de Comunicação)

Referências:

1 A. T. Yue et al., Phys. Rev. Lett. 111, 222501 (2013)

https://doi.org/10.1103/PhysRevLett.111.222501

2 F.M. Gonzalez et al., Phys. Rev. Lett. 127, 162501 (2021)

https://doi.org/10.1103/PhysRevLett.127.162501

Assessoria de Comunicação – IFSC/USP

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Instituto de Física de São Carlos - IFSC Universidade de São Paulo - USP
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