Notícias

21 de março de 2021

Artigo: “A crise, quando mais precisamos da ciência no Brasil”

Osvaldo Novais de Oliveira Junior, docente de nosso Instituto, é um dos mais conceituados cientistas nacionais, cuja sua clarividência nos obriga sempre a uma ou mais reflexões, dada a profundidade de sua linha de pensamento. Neste artigo, o Prof. Osvaldo fala sobre Ciência em meio a uma crise sanitária sem precedentes no Brasil e no mundo, começando por afirmar que o conhecimento tem sido central na evolução da humanidade, responsável pelos enormes avanços na qualidade de vida e longevidade dos seres humanos, principalmente a partir do Século XX em que se gerou mais desenvolvimento do que em todos os outros anteriores somados.

“Isso ocorreu porque a estrutura da matéria foi decifrada, a partir da teoria quântica e da teoria da Relatividade de Einstein. Pode parecer surpreendente que essas descobertas, nas primeiras décadas do Século XX, tenham tido tanto impacto, mas uma análise mais detalhada permite explicar o desenvolvimento.

Foi possível conceber novos materiais e mais bem aproveitar os recursos naturais, quando se descobriu que a matéria é feita de átomos, que se juntam para formar moléculas. E após desvendar as razões pelas quais se formam gases, líquidos e sólidos, e de diferentes tipos. Usando apenas exemplos de medicina e informática, para ilustrar, menciono antibióticos, novos fármacos, novas terapias, a criação de dispositivos eletrônicos e dos computadores. Nada disso existiria sem o conhecimento gerado ao se determinar a estrutura da matéria.

É interessante lembrar que uma das tecnologias mais utilizadas atualmente, a do GPS (do inglês global positioning system), depende essencialmente da teoria da Relatividade. Como o sistema funciona com satélites que enviam sinais para a Terra que precisam ser detectados com alta precisão, é necessário fazer correções relativísticas para determinar a posição de um objeto na Terra. Sem essas correções advindas da Teoria da Relatividade, os erros de posicionamento acumulados em uma semana seriam de mais de 10 km. Em outras palavras, o GPS seria inviável sem o conhecimento da Teoria da Relatividade.

Um efeito prático de todo esse desenvolvimento está na qualidade de vida da humanidade. É incrível que um cidadão de qualquer país hoje, desde que com condições mínimas de subsistência, tenha mais conforto do que reis e nobres há pouco mais de um século. Por outro lado, a vida em sociedade se tornou muito mais complexa, já que se criaram dependências de muitas tecnologias. De fato, uma cidade não pode funcionar sem energia elétrica e sem Internet. Outras consequências indesejadas também apareceram, a principal delas sendo a desigualdade crescente, tanto entre nações quanto entre indivíduos em uma mesma nação. E não há fator indutor de desigualdade maior do que o conhecimento, como discutirei adiante.

A desigualdade é uma característica intrínseca das sociedades. Não me refiro apenas à desigualdade econômico-financeira; também são observadas desigualdades nos talentos, habilidades e oportunidades. Diante dessa constatação, a missão de líderes numa sociedade é a de mitigar os efeitos dessas desigualdades, criando políticas públicas que possam proteger os mais vulneráveis e oferecer oportunidades de maneira igualitária. Para tanto, atenção especial deve ser dada à educação, pois só uma educação pública de qualidade pode gerar oportunidades para todas as crianças e jovens.

O que torna o conhecimento crucial para as desigualdades tem a ver com o fato de só conseguir adquirir conhecimento eficientemente quem já possui algum. Ao contrário de recursos financeiros, por exemplo, que podem ser distribuídos de maneira equânime, isso não ocorre com o conhecimento. Imaginemos que eu pudesse, neste texto, divulgar códigos que dessem direito a um bônus financeiro. Qualquer pessoa poderia usar o código e resgatar o dinheiro. É certo que o uso que seria feito do dinheiro poderia variar muito; alguns gastariam imediatamente, outros poderiam investir e ganhar ainda mais dinheiro. Independentemente dessas diferenças, todos poderiam receber a mesma quantia. Mas isso não se aplica a conhecimento: se eu escrevesse este texto numa língua que poucos leitores conhecem, apenas estes poderiam adquirir o conhecimento que porventura pudesse ser transmitido aqui. Ou seja, só adquiriria o novo conhecimento quem já conhecesse a língua utilizada. Esse exemplo é ilustrativo de toda forma de conhecimento: eu, um professor de física, não me beneficiaria de uma aula de mecânica de automóveis, pois sou completamente leigo no assunto.

Os argumentos acima, sobre o valor do conhecimento, servem de pano de fundo para nos perguntarmos: como chegamos até aqui? Como foi possível atingir um nível tão alto de tecnologia, inclusive agora, com a perspectiva de máquinas inteligentes que poderão substituir humanos em muitas tarefas intelectuais? Por trás de cada avanço, de cada dispositivo de alta tecnologia que usamos, por trás de nossa comunicação via telefones celulares, inimaginável há apenas 30 anos, estão contribuições científicas. A ciência vem moldando nossa sociedade. Mesmo que não percebamos, nossa vida é inteiramente calcada em sistemas e aparelhos que resultaram de avanços científicos. De maneira que, o negacionismo da ciência, que tem se manifestado no Brasil e em outros países, chega a ser inacreditável.

Historicamente, os conhecimentos gerados pela ciência têm trazido contribuições de diferentes naturezas. A mais visível é associada à criação de novas tecnologias, em que os principais avanços vêm de países com os sistemas científicos mais consolidados. Há também contribuições que, no curto prazo, aparentam apenas satisfazer a curiosidade de cientistas, sem aplicações imediatas, mas que levam a conquistas significativas no longo prazo. Um exemplo já mencionado aqui foi a Teoria da Relatividade, concebida como uma teoria abstrata para explicar alguns fenômenos, e que hoje permite aplicações imprescindíveis. Um terceiro tipo de contribuição advém do conhecimento que não gera tecnologias diretamente, mas permite a uma população absorver tecnologias e adaptá-las para criar soluções inovadoras.

O Brasil já demonstrou ser capaz de produzir ciência de qualidade com grandes impactos, dos três tipos referidos acima. Passamos de importadores de alimentos até a década de 1970 para figurar entre os maiores exportadores no momento. Desenvolvemos tecnologia para extração de petróleo em águas profundas e criamos sistemas informatizados para bancos antes de muitos países desenvolvidos. A produção científica brasileira também aumentou com uma das taxas maiores do mundo nas últimas décadas, graças ao estabelecimento de um sistema científico robusto – ainda que pequeno para as dimensões do País e de sua população.

Infelizmente, nosso sistema científico está sob risco. Os cortes sucessivos nos investimentos nos últimos anos estão estrangulando centros de pesquisa, deixando sem perspectivas uma geração de cientistas. O que seria impensável, até recentemente, hoje está se tornando rotina: um grande número de jovens cientistas, com mestrado e doutorado, está sem renda alguma. Não há emprego e nem bolsas para continuar seu trabalho de investigação, inclusive em áreas de saúde neste momento tão agudo com a crise da pandemia.

A pandemia da COVID-19 vem mostrando, de maneira exacerbada, a desigualdade originária de uma distribuição não uniforme do conhecimento. Tanto entre pessoas de um mesmo País, como entre países – como bem ilustrado com a disponibilidade limitada de vacinas. Está mostrando também que alguns conceitos da sociedade precisam ser modificados. Para a segurança nacional, mais importante do que ter equipamento bélico é ter ciência e tecnologia que garantam segurança alimentar e para o combate a crises de saúde. Em outras palavras, só é segura uma nação que produz ciência e é capaz de incorporar conhecimento científico.

Não quero ser alarmista, mas se o descaso com nossas agências de fomento e universidades continuar, poderemos perder as conquistas de décadas com o desmantelamento do sistema científico. Sem investimento contínuo, fazer ciência e desenvolver tecnologia será inviável. As consequências serão nefastas. Na saúde, por exemplo, em algumas décadas não teremos os médicos e outros profissionais de alto nível, formados em universidades de pesquisa, pois não haverá universidades de pesquisa com qualidade.

Há no horizonte uma chance de reverter essa situação. Se o Governo Federal permitir a utilização dos recursos hoje contingenciados no Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), poderemos voltar a sonhar com projetos de envergadura não só para atacar problemas que hoje afligem nossa sociedade – e são muitos – como também para garantir nosso futuro como nação independente”.

Rui Sintra – Assessoria de Comunicação – IFSC/USP

Imprimir artigo
Compartilhe!
Share On Facebook
Share On Twitter
Share On Google Plus
Fale conosco
Instituto de Física de São Carlos - IFSC Universidade de São Paulo - USP
Obrigado pela mensagem! Assim que possível entraremos em contato..