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27 de novembro de 2019

A importância da vigilância epidemiológica molecular em hospitais

Infecção relacionada à assistência à saúde – ou IRAS, como pneumonia, infecção do trato urinário dentre outras – pode ocorrer no período de hospitalização e ser provocada por microrganismos que sobrevivem no ambiente hospitalar. Devido ao uso de antissépticos e de antibióticos, os microrganismos que conseguem sobreviver no ambiente hospitalar muitas vezes apresentam resistência a mais substâncias do que aqueles microrganismos que se encontram livres na natureza.

Isso significa que o tratamento de IRAS pode ser complicado, porque antibióticos disponíveis podem não mais fazer efeito contra esses microrganismos multirresistentes.  Por isso, a vigilância epidemiológica molecular é muito importante nos hospitais. Realizar vigilância significa que o hospital deverá estar em alerta quanto a possível disseminação de microrganismos, isolando amostras bacterianas – seja dos pacientes colonizados e/ou infectados, ou do ambiente hospitalar (leitos, equipamentos, etc) – e caracterizando-as para tomar medidas de contenção/controle.

LEMiMo é o Laboratório de Epidemiologia e Microbiologia Molecular do Instituto de Física de São Carlos, Universidade de São Paulo, que foi a sede do estudo com E. faecium

A vigilância epidemiológica molecular, dependendo da técnica usada, permite conhecer o perfil de resistência das bactérias, se elas são todas do mesmo clone, e se elas compartilham um DNA chamado plasmídeo, que é onde genes de resistência podem ser encontrados. Com estas informações em mãos, o hospital já consegue agir com mais sucesso. A existência da mesma bactéria em lugares, ou pacientes diferentes, mostra a necessidade de se intensificar a higienização para se conter a disseminação bacteriana. A vigilância também tem grande impacto em hospitais, porque o diagnóstico de infecções na maioria dos laboratórios clínicos não é tão rápido e, em alguns casos, o médico precisa entrar com um antibiótico mesmo sem saber o resultado do exame que indicaria o melhor tratamento. Se a infecção for uma IRAS e os médicos já tiverem conhecimento das bactérias que existem naquele hospital, esse tratamento, chamado “empírico”, terá maior chance de dar certo.

A bactéria chamada Enterococcus faecium está dentre as bactérias que podem causar IRAS e está na lista de bactérias multirresistentes com alta prioridade para o desenvolvimento de novos fármacos, publicada pela Organização Mundial de Saúde em 2017. Foi pensando em conhecer melhor as amostras de E. faecium circulantes em um grande hospital, em São José do Rio Preto, que surgiu esse projeto de vigilância epidemiológica molecular financiado pela FAPESP (2016/23810-6) e realizado uma parte no Laboratório de Epidemiologia e Microbiologia Molecular (LEMiMo), do IFSC-USP, liderado pela Profa. Dra. Ilana L. B. C. Camargo, e outra parte nos Estados Unidos, com a colaboração do Professor Michael S. Gilmore, da Harvard Medical School. Além destes pesquisadores, Suelen Mello veio para o LEMiMo para desenvolver este projeto que foi tema de seu doutorado, orientado pela Profa. Dra. Ilana, através do Programa de Pós-Graduação em Genética Evolutiva e Biologia Molecular da UFSCar. Suelen teve bolsa CAPES tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, para executar este estudo.

Durante a caracterização das bactérias E. faecium isoladas de infecções de pacientes hospitalizados, o antibiótico chamado daptomicina foi testado, pois era um antibiótico que ainda não estava em uso pelo hospital, mas devido a multirresistência encontrada nesta espécie bacteriana, eventualmente haveria necessidade de seu uso. A princípio, o que chamou atenção do grupo foi que algumas amostras desta espécie já eram resistentes à daptomicina, antes mesmo do seu uso.  As técnicas moleculares usadas no LEMiMo para tipar as bactérias, indicaram que as bactérias resistentes à daptomicina eram todas do mesmo clone, ou seja, a mesma bactéria foi encontrada em diferentes pacientes.

Daptomicina é um excelente antibiótico bactericida de último recurso que age na membrana bacteriana, mas seu mecanismo de ação ainda não está completamente elucidado. Casos de resistência a este antibiótico são raros. Outros pesquisadores já descreveram mutações pontuais no DNA bacteriano que podem levar a uma alteração na membrana bacteriana, fazendo com que o antibiótico não mais consiga agir ali. Porém, estes mecanismos de resistência já descritos não estavam presentes nestas amostras deste estudo. Com isso, o grupo percebeu que não existe apenas uma via de resistência ao antibiótico. O foco do projeto se voltou para o estudo destas novas vias que permitem o E. faecium se tornar resistente à daptomicina.

Analisando todas as E. faecium isoladas e incorporadas neste projeto, a bactéria HBSJRP18 se destacou das demais, pois era hipersensível à daptomicina. Enquanto era necessário cerca de 2 mg/L de daptomicina para matar as demais bactérias, apenas 0,06 mg/L já matava a HBSJRP18. O grupo passou a investigar, então, o que a tornava tão sensível e o que poderia deixá-la resistente.

A HBSJRP18 foi exposta à daptomicina em cultivos diários, em laboratório, até que linhagens resistentes fossem isoladas. Em seguida, o genoma das bactérias foi sequenciado para comparação, a fim de se encontrar as mutações que poderiam ter selecionado as bactérias mais resistentes durante este processo.

Prof. Dr. Michael S. Gilmore, Suelen Scarpa de Mello e Profa. Dra. Ilana L. B. C. Camargo, que juntamente com outros colaboradores participaram do estudo

O resultado foi bastante surpreendente, pois a bactéria hipersensível apresenta uma mutação exclusiva no gene lafB, que codifica uma proteína glicosiltransferase responsável pela construção da base de uma estrutura celular chamada ácido lipoteicóico, ancorada na membrana citoplasmática da bactéria. Durante o processo de exposição à daptomicina, foi possível observar a reversão desta mutação, o que fez com que as bactérias voltassem ao nível de sensibilidade tradicionalmente encontrado. Para provar o papel da alteração do gene lafB na hipersensibilidade à daptomicina, o gene intacto foi colocado na bactéria com o gene mutado, e os resultados indicam a sensibilidade nos níveis normalmente encontrados nesta espécie bacteriana. Isso significa que LafB, a proteína codificada pelo gene lafB, poderá ser um alvo terapêutico. Se for descoberto algum composto que inative a proteína LafB, a bactéria poderá ficar cerca de 30 vezes mais sensível à daptomicina e esse composto poderia ser usado no tratamento junto com o antibiótico para garantir sua eficácia.

Além disso, o grupo verificou que o gene dak, que codifica uma dihidroxiacetona quinase, era o único gene com alterações no genoma, quando comparadas as bactérias resistentes selecionadas in vitro com as sensíveis. Mutação neste gene foi descrita apenas recentemente por outros pesquisadores, mas seu papel na resistência à daptomicina não foi elucidado até hoje. O LEMiMo continua suas pesquisas para entender qual é a modificação que mutações em dak causam no metabolismo das bactérias.

Quanto as E. faecium resistentes à daptomicina isoladas de pacientes do hospital, os pesquisadores ainda não têm uma resposta quanto ao mecanismo envolvido. Normalmente, o uso inadequado de um antibiótico pode selecionar bactérias resistentes a ele, mas, neste caso, as bactérias ainda não haviam sido expostas a daptomicina. Além de resistentes à daptomicina, elas também são resistentes à vancomicina. Porém, apresentam sensibilidade aos antibacterianos bacteriostáticos tigeciclina, linezolida e tedizolida, que poderiam ser alternativas de tratamento.

Enfim, com este trabalho, o grupo verificou que houve uma pequena disseminação de E. faecium resistente à daptomicina entre alguns pacientes do hospital, mesmo sem nunca terem usado este antibiótico. Além disso, verificou-se que há mais de uma via de resistência à daptomicina em E. faecium e que a glicosiltransferase LafB pode ser um novo alvo terapêutico para o desenvolvimento de novos compostos que atuem junto com daptomicina no tratamento de infecções causadas por E. faecium multirresistentes.

Este trabalho foi publicado recentemente na revista Journal of Antimicrobial Chemotherapy e pode ser acessado clicando AQUI.

Assessoria de Comunicação – IFSC/USP

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Instituto de Física de São Carlos - IFSC Universidade de São Paulo - USP
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